ENTREVISTA Dona Raquel Trindade fala sobre o centenário do nascimento de seu pai, o grande poeta negro comunista e libertário Solano Trindade, e a continuidade do trabalho artístico coletivo germinado em Recife no início do século passado, espraiado pelo Brasil e mundo desde Duque de Caxias-RJ e do Embu de todos os cantos.
Danilo Dara e
Danilo Dara e
Marcelo Tomé
Prof. Antonio e Raquel no lançamento das comemorações
do centenário de nascimento de Solano Trindade no Teatro
Popular Solano Trindade - Embu das Artes - SP - 07/07
CONVERSAR COM Raquel Trindade (a Kambinda) é sempre honra e desafio, pela densidade de história, espiritualidade e sabedoria que ela traz consigo em cada palavra, em cada gesto. Além de ser filha de quem é, e uma das principais herdeiras artísticas do grande poeta negro comunista Solano Trindade. Para se ter uma idéia da responsabilidade, já em 1944, duas grandes figuras já escreviam algumas poucas e boas palavras sobre Solano. Para Drummond: “a leitura de seus versos deu-me confiança no Poeta que é capaz de escrever ‘Poema do homem’ e ‘O canto dos Palmares’. Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva”. Para Abdias do Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro e um dos protagonistas da Frente Negra Brasileira: “Solano Trindade é o brado da raça, o maior Poeta Negro do Brasil contemporâneo. Porque Solano Trindade não se encerrou na torre de marfim da arte pura e tampouco escreveu poesia negra com linguagem de ‘negro-branco’, desses que se envergonham de abordar o típico das gafieiras e das macumbas como legítimas expressões do anseio estético e da misteriosa espiritualidade negra. Ele é Negro, sente como Negro, e como tal cantou as dores, as alegrias e as aspirações libertárias do afro-brasileiro.” Pois é: no próximo ano, Solano completará seu centenário de nascimento. E as celebrações já começaram dias 21 e 22 de julho, na sua Embu das Artes, com uma reunião poderosa de grupos afro-populares de música, dança e poesia. Não pararão tão cedo, porque toda a imensa família Trindade de sangue e coração promete um 2008 cheio de festa e reflexão sobre a vida e obra do poeta. As iniciativas começam a pipocar (como o documentário “Imagens de uma vida simples”, feito pelos grupos periféricos NCA e Cia. Sansacroma), e o calendário a se preencher. Como ele gostava: sem dia nem hora pra terminar.
Com a palavra agora Dona Raquel Trindade, sua herdeira artística.
Brasil de Fato – Dona Raquel, fale um pouco de sua infância e da principal lembrança deixada por seu pai.
Raquel Trindade – Tenho muitas boas lembranças de papai. Primeiro, o quanto ele ficava assustado de ver outros pais batendo nas suas crianças. Dizia que ainda realizaria seu sonho de ver os direitos das crianças cumpridos. Depois a preocupação que ele tinha com minha formação: a gente morava em Duque de Caxias, e ele levava a gente pra ver a Orquestra Afro-Brasileira do Abigail Moura, o Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento, o Balé Afro de Mercedes Batista. Mas também íamos muito ao Centro do Rio, à Pinacoteca, à Escola de Belas Artes e ao Teatro Municipal para assistir ópera e música clássica. Ele queria que eu vivesse e conhecesse bem a cultura popular, mas também a ocidental e erudita. Dizia que não podia criticar nada sem conhecer. Papai falava: “trate de aprender porque o que tá na mente é difícil de ser roubado, e eu não vou te deixar nada material”.
E como foi a chegada da família ao Rio em 1942?
Papai teve três cidades fortes em sua vida: Recife, Duque de Caxias e Embu das Artes. No Rio, papai chegou antes, e mamãe sabia que ele freqüentava muito o bar Vermelhinho (que era ponto de encontro de artistas e intelectuais de esquerda). Então chegamos ao porto, e ela foi ao bar. Grande Otelo deu o recado a papai, e os amigos próximos cotizaram um aluguel de uma casa de fundos na Gamboa. No Rio, papai conseguiu realizar alguns sonhos, como a criação do Teatro Popular Brasileiro (TPB), juntamente com a minha mãe – Margarida da Trindade, e o sociólogo Edson Carneiro. Era um teatro feito por operários, empregadas domésticas, estudantes e comerciários, que se apresentava muito nas ruas, universidades – fez muita apresentação com a UNE.
E como Solano pensava a relação entre arte e política?
Em Recife, junto ao escritor José Vicente de Lima e Barros Mulato, em 1936, papai já tinha fundado a Frente Negra Pernambucana. No Rio, filiou-se ao Partido Comunista. Papai nunca deixou de ser socialista, e só deixou o Partidão [PCB] depois de muito tempo, já em São Paulo, por duas razões: não achava que o problema do negro era só econômico – dava ênfase à questão racial; e não queria uma arte subordinada apenas às questões políticas, pois sua própria arte já era um exercício de libertação. Não queria pintar só a miséria do negro, mas falar de outras coisas, da parte lúdica. ...
e sua prisão em Duque de Caxias, em 1944?
Disseram que ele tinha armas em casa. A justificativa era o poema “Trem sujo da Leopoldina – tem gente com fome”, e por ele ter assinado o Manifesto Mangabeira. Chegaram à noite. Liberto [filho de Solano] era pequeno e estava com sarampo. Os homens entraram armados até os dentes. Eles reviraram tudo e não acharam arma nenhuma. Levaram ele, seus livros e sua papelada, e não falaram pra onde o estavam levando. Ficou uns dias incomunicável. Mamãe foi de prisão em prisão, até que, no presídio na Rua da Relação, no Centro do Rio, um policial negro que trabalhava lá, disse: “não diga que eu lhe falei, mas ele está aqui”. Passamos a noite do lado de fora da cadeia. No dia seguinte, minha mãe – paraibana braba – conseguiu dobrar o delegado e falar com papai. Ele disse: “fi ca calma, Margarida, que eu não estou sendo torturado”. Dias depois, saiu.
Outra história dura foi a morte de seu irmão Chiquinho...
Isso foi em 1964-1965. Em 64 a polícia foi em casa buscando Francisco Solano Trindade Filho, o Chiquinho. Encontraram ele empinando pipa. Estavam à procura dos outros 10 do Grupo dos 11 do Brizola. Meu irmão disse que eles teriam que procurá-los. Dizem que um rapaz disse ao meu irmão: “Você vai ter que servir o Exército, não vai? Lá a gente conversa”. Em 1965 mamãe recebeu uma ligação, e ao confirmar que ele tinha ido para o Exército, um sujeito disse do outro lado: “Sim ele já foi e já morreu” Ela exigiu o corpo, que eles entregaram com um tiro no peito, um livro – dicionário de inglês, e 10 cruzeiros. Eram as armas que ele tinha.
O trabalho do TPB continuou em 1950-60? E a vinda para o Embu?
O trabalho do teatro continuou seguindo seu lema: “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo na forma de arte”. Seguiu fazendo apresentações pelo país, inclusive uma série na Polônia e Tchecoslováquia. No começo dos anos de 1960, papai conheceu o escultor Assis, que o convidou pra vir pro Embu. Papai veio com todo o elenco do TPB e se apaixonou pelo Embu. A cidade começou a atrair muita gente e ficar conhecida no mundo todo. Até que em 1965, chateado com os “picaretas” e a comercialização, Solano foi morar na Vila Sônia e, depois, no Ferreira [bairros da periferia de São Paulo].
Como foi sua morte e como vocês continuam o trabalho?
Ele morreu no Rio, em 1974. Antes disso esteve adoentado, e sua casa tinha sido toda roubada. Mas é um mito dizer que ele morreu como indigente. Ele foi bem cuidado, e minha mãe e minha irmã Godiva fizeram um enterro decente pra ele, em Jacarepaguá. Em 1975 eu criei o Teatro Popular Solano Trindade, que continua firme até hoje. Seguimos passando os ensinamentos de pessoa a pessoa: são oficinas gratuitas para a população, trabalho com as crianças. Agora falta estrutura para cuidar e recuperar todo o acervo dele, divulgar melhor sua obra.
Você chegou a dar aula um tempo na Unicamp...
Eu cheguei a dar aula na Unicamp, a partir de 1987, por convite de Antônio Nóbrega. Primeiro, no Departamento de Dança, depois no de Artes Dramáticas – a convite de Celso Nunes. Ministrei cursos sobre Teatro Negro no Brasil, sobre Folclore e Sincretismo Religioso Brasileiro para a graduação. Como só tinha um negro em toda graduação, pedi para dar um curso de extensão para funcionários, trabalhadores de fora, outros estudantes. Desse curso se originou o grupo Urucungos, Puítas e Quijenges, que segue vivo, independente da universidade. Entrei como técnico- didata, depois fui promovida a professora de Sabedoria Popular. Aí veio aquela pressão sutil de muitos professores com vários títulos de mestrado, doutorado... Mas você me perguntou se eu toparia voltar: sim, no caso de um curso teórico com apoio prático de meu grupo.
É a favor das cotas...
Sim, pelas necessidades da época. Se não houvesse discriminação, não seria. Só que tem um problema: o que eu estudei no primário na década de 1940, está faltando no ginásio de hoje. Os professores não conseguem estudar, as crianças passam sem saber, o vestibular é cruel e são poucos os cursinhos populares (tem o Educafro – mas não é sufi ciente), e a maioria das famílias pobres que precisam da escola pública são negras.
E sua opinião sobre a Lei nº 10.639, que obriga a inclusão de aulas sobre cultura afrobrasileira no currículo de todos os anos?
Vejo com bons olhos, mas me preocupa que os professores não conheçam o assunto. E, pior que não ensinar, é ensinar errado. Eu fico revoltada, por exemplo, quando vejo muita mãe pondo o nome de Dandara em suas filhas, sendo que Elesbão Dandara foi um importante líder da Revolta dos Malês em 1835, e não uma mulher (de Zumbi) no quilombo dos Palmares.
Acredita que haja religião afro-brasileira?
Chamar de religião (e não de seitas) é aceitável pelo respeito, mas trata-se de uma relação com a natureza, da qual a gente não pode se desligar nunca. Ossanha são as plantas; Ogum os minerais; Yemanjá, cuja origem remonta o rio africano Yemoje, é filha de Olokum, que é o mar onde ela deságua. Oxum é a água doce, Nanã os lagos e as águas paradas. Tudo se liga à natureza, e os orixás são energias da natureza com as quais os homens se relacionam. Eu brincava com papai que se eu soubesse física, talvez eu entendesse mais dos orixás.
Uma curiosidade: por que Raquel Trindade, a Kambinda?
Porque quando eu era jovem e ganhava prêmios por minhas pinturas, diziam que eu ganhava porque era filha de Solano. Aí resolvi assinar Raquel Kambinda, um tipo de negro do Sul da África, e uma região de Angola chamada Kabinda. É também uma negra velha da umbanda que dá bons conselhos. Muito embora eu seja do Candomblé, nação Kêto, filha de Obaluayê e Oyá. Danilo Siqueira Dara é historiador e membro do coletivo de cultura do MTST. Marcelo Tomé é pintor, dançarino e produtor, além de neto adotivo de Raquel Trindade.
Quem é Raquel Trindade Souza, a Kambinda, é a filha mais velha do grande poeta negro comunista Solano Trindade. Pintora, dançarina, coreógrafa, grande conhecedora da história e cultura afro-brasileira, é considerada uma das maiores griots (guardiões do conhecimento) vivas no Brasil. Fundadora do Teatro Popular Solano Trindade e da Nação Kambinda de Maracatu, sempre ministrou cursos e oficinas livres por todo o país, principalmente no Embu das Artes, onde segue enraizada. Casou-se oito vezes, amores que lhes deram três filhos – o compositor Vitor da Trindade, a artista culinária Regina Célia e a escritora dançarina Dadá, e sete netos de sangue (dentre os quais o rapper Zinho Trindade e o percussionista Manuel). Adotou mais três netos de coração, todos artistas como o poeta e “secretário” pra todas as horas Marcelo Tomé. Autora de Embu: Aldeia de M’Boy (Noohva América), atualmente ela administra o TPST e seus projetos, além de estar elaborando um novo livro sobre danças de origem bânto chamado Urucungos, Puítas e Quijenges, e coordenando as atividades do centenário de Solano. tpstrindade@yahoo.com.br
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